
"Necessária é também uma inclinação para enfrentar questões que hoje ninguém se atreve a elucidar; inclinação para o proibido; predestinação para o labirinto”. (Friedrich Nietzsche em O anticristo)

Conhecemos a proposta do clã abordado na história
em dois manifestos: o Manifesto Anarconinja e o Manifesto Anarcopirata. Ambos
despontam na origem da “Irmandade Libertália”, que nos oferece um problema e um
culpado: a civilização é “o maior erro da humanidade”. Erro que acarretou
efeitos colaterais como o "tripé sedentarismo-propriedade-burocracia”, engrenagens
fundamentais de toda manifestação civilizacional.
Wagner nos apresenta a interessante metáfora do urubu-de-cabeça-preta como “efígie de astúcia, oportunismo e vagabundagem” – modelo de atuação dos membros de Libertália. Nada mais sagaz que nos lembrar que os urubus, em seus voos, são capazes de planar e com isso não gastar energia. Eles nos ensinam a distribuir nossa energia e usá-la somente quando necessário. Ao que parece, essa é a nobre saída dos agentes de Libertália, liderados por Julian Lobstein: um “jogo sujo” a serviço da liberdade de se autogovernar. Nas trinta e cinco páginas do livro há um interessante e atual suco anárquico que trata de temas controversos como “zonas de autonomia temporária”, guerrilhas armadas e manifestações Black Blocs.
Libertália não poupa fortes e irônicos ataques ao trabalho, à civilização, ao capitalismo, à luta armada, ao crime não ideológico, aos “parasitas capitalistas” e ao “franciscanismo esquerdista”. Vale a pena conferir. E digo mais: existe no livro um eixo que norteia questionamentos de natureza mais, digamos, existenciais – afinal, a vaidade de “fazer justiça” pode ser considerada um dos eixos temáticos da obra. É necessário deslocar-se das preocupações ideológicas para perceber um cerne que perpassa as entrelinhas de Libertália e parece mostrar-se de forma mais acentuada nas últimas linhas do conto. É sobre isso e muito mais que converso com o autor.
Em Libertália há
um intenso e incontestável teor político. Afinal, trata-se de uma proposta
fictícia ou não?
Libertália é uma criatura fantástica capaz de desencadear efeitos concretos, “realistas”. Numa época em que política e ficção copulam e fazem filhos cada vez mais discretos e intrincados, Libertália está, digamos, na moda.
Os dois manifestos
presentes no conto são, do ponto de vista anarquista, perfeitamente lúcidos.
Eles informam e tendem a instruir grupos mais jovens interessados nas ideias
anarquistas. Não é provável que os leitores interpretem seu conto como um
manual tático para burlar o “sistema”? O que podemos pensar sobre você como
autor? Você compactua com as estratégias dos manifestos?
Assim
como não é necessário ser anarquista para escrever sobre anarquismo, os
personagens de uma história não devem ser depositados na conta do autor – bem,
pelo menos não automaticamente, por transferência, a maneira mais fácil e
preguiçosa, sem filtros, lupas e certos instrumentos cirúrgicos imprescindíveis
para uma dissecação da criatura que, aliás, necessariamente, por milhares de
rios (subterrâneos, inclusive), desemboca na vida do criador.
É um destino inevitável, mas que, no caso de Libertália, deve ser conquistado. A obra deve falar mais do que o obreiro.
Anarquizar e libertalizar jovens e adultos susceptíveis é um dos efeitos colaterais mais perigosos de uma fórmula criada para tratar de justiça, liberdade, controle, conspiração e outras metástases e inflamações do organismo social e pessoal. É a velha história do remédio que vira veneno, sabe?: depende da dose e do paciente. O criador da fórmula pode garantir sua eficácia caso ela seja usada adequadamente. Mas como diabos poderia impedir que seus hospedeiros a ignorem, transformem ou simplesmente desperdicem sua inteireza através de um uso excessivamente ingênuo, pessoal, limitado?
É um destino inevitável, mas que, no caso de Libertália, deve ser conquistado. A obra deve falar mais do que o obreiro.
Anarquizar e libertalizar jovens e adultos susceptíveis é um dos efeitos colaterais mais perigosos de uma fórmula criada para tratar de justiça, liberdade, controle, conspiração e outras metástases e inflamações do organismo social e pessoal. É a velha história do remédio que vira veneno, sabe?: depende da dose e do paciente. O criador da fórmula pode garantir sua eficácia caso ela seja usada adequadamente. Mas como diabos poderia impedir que seus hospedeiros a ignorem, transformem ou simplesmente desperdicem sua inteireza através de um uso excessivamente ingênuo, pessoal, limitado?
Minha vó e minha tia sugeriram que as capas das próximas edições de Libertália venham com avisos como: “não recomendável para menores de 25 anos”, “não tente fazer isso em casa”, “atenção: leia direito”...
Você lançou o seu
livro meses atrás. Como foi recebido até agora?
Para minha surpresa, recebi mais críticas e
elogios de desconhecidos do que de amigos e próximos. Uma ativista espanhola se
ofereceu para me ajudar a lançar o livro em Barcelona – ela acredita que, a
médio ou longo prazo, Libertália se tornará tão influente e “renovador” quanto
Zonas Autônomas Temporárias ou El Libro Rojo de Yomango [risos]. Uma
estudante de letras mineira gostou dos desafios morais da trama e celebrou seu
“minimalismo denso e contundente”.
Por outro lado, um escritor de zines formado em direito e apaixonado por romances me enviou um ensaio tão chato, longo e professoral quanto uma peça judicial, me intimando a explicar fatos supostamente ambíguos e obscuros da história, sentenciando – ideologicamente e/ou estilisticamente – a mim, Lobstein e até Daniel Liberalino! (meu honroso prefaciador), e sugerindo como eu devia ter escrito o conto [risos] – que, aliás, para o zineiro devia ter sido um romance [risos].
Um aparente eleitor de Bolsonaro acusou meu livro de “ensinar as pessoas a praticarem crimes” – e avisou que “isso não vai ficar assim!”. Uma petista solicitou que eu parasse “de sabotar a luta de classes” e que fosse “trabalhar de verdade”. [risos]
Por outro lado, um escritor de zines formado em direito e apaixonado por romances me enviou um ensaio tão chato, longo e professoral quanto uma peça judicial, me intimando a explicar fatos supostamente ambíguos e obscuros da história, sentenciando – ideologicamente e/ou estilisticamente – a mim, Lobstein e até Daniel Liberalino! (meu honroso prefaciador), e sugerindo como eu devia ter escrito o conto [risos] – que, aliás, para o zineiro devia ter sido um romance [risos].
Um aparente eleitor de Bolsonaro acusou meu livro de “ensinar as pessoas a praticarem crimes” – e avisou que “isso não vai ficar assim!”. Uma petista solicitou que eu parasse “de sabotar a luta de classes” e que fosse “trabalhar de verdade”. [risos]
Um amigo filósofo viu distopia antimilitante em Libertália. Uma amiga militante pediu que eu ensinasse os truques libertalianos num evento...
Enfim, são elogios, apostas, delírios, paradoxos, piadas prontas e ironias involuntárias como essas que fazem a vida valer a pena.
Contudo, apesar da dificuldade cada vez maior que as pessoas têm de realmente compreender o que leram (ou deviam ter lido!), frequentemente certas flores e espinhos de Libertália têm chegado nos endereços certos pelas vias certas, ou seja, têm agradado e ferido aqueles que naturalmente devem agradar e ferir. Sinto que a maioria das pessoas não foi capaz de andar pelo livro sem se cortar. Vejo dor e raiva em seu silêncio.
Meu amigo e escritor Daniel Liberalino, um dos poucos que, como você, embarcou pra valer no livro, me deu um ótimo e iniciático conselho: “é preciso escolher entre escrever e ter amigos”. Eu concordo em parte, pois escrevo para (des)encontrar amigos. E apesar de tantos sintomas, carajo, a verdade é que um escritor nunca sabe como uma história vai acabar ou começar dentro de cada um. Ah mistério maravilhoso! – e terrível!
Ao que parece, os
justiceiros de Libertália estão em uma categoria diferente do Bando Bonnot, por
exemplo. A proposta adotada pelo clã Libertália não inclui pistolas, e sim a
prática de sonegação de impostos e multiplicação de criptomoedas, por exemplo
– “crimes ideológicos”. O ataque ao
sistema pelas brechas, pelo lado de dentro, pelas portas menos vigiadas.
Trata-se de uma apologia ao crime ou de uma contestação ao que já existe?
Sonegar no Brasil não seria quase uma redundância? Libertália faz apologia ao
crime?
Há maneiras mais eficazes de defender o crime
[risos]. A irmandade Libertália é um espelho em que podemos mirar diversas
estirpes humanas.
O que mais me
surpreendeu no livro foi o encontro de duas questões tão humanas: o idealismo e
o realismo. A partir da segunda página, percebi que havia questões não somente
ideológicas, mas também sobre a condição humana em si. Você diz que a
militância de Lobstein resultou de uma revolta que tinha “mais a ver com sua
infância do que com a luta de classes”. Dessa forma, para o personagem “foi
mais divertido culpar o ‘sistema’ do que a si mesmo”. Sendo assim, todas as
lutas, organização e estratégias da Irmandade Libertália não perpassam só uma
luta contra o “sistema”, mas uma procura por sentido?
Quando o desespero
de atribuir um sentido à existência se casa com a justificação inconsciente do
próprio fracasso num inimigo exterior, o suicídio (lento ou súbito), a loucura
e a guerra nunca estão distantes. E, no entanto, qual igreja religiosa ou política
não nasceu desse matrimônio infeliz?
No início do
conto, Lobstein não passava de “um sonhador pobre, bêbado e solitário”. Ao
longo da trama, ele alcança certo sucesso com a construção de Libertália.
Entretanto, no fim do conto, após dois episódios – o da família indiana e o ataque do lobo ao
filhote de coelho –, Lobstein percebe que tentar fazer justiça não o fez mais
justo, e que fazer justiça era sua maior vaidade. Esse conto é uma espécie de
aviso de que toda luta política é incapaz de curar as piores mazelas humanas? A
aflição final de Lobstein é própria da insatisfação daquele que procura?
Haveria uma busca incessante que a mais utópica ideologia não consegue
compensar?
Libertália nos desafia a responder tudo isso –
e algo mais.
Os membros de
Libertália tomam o urubu somente como um agente de limpeza externa do mundo
capitalista, ou também como um agente de limpeza do que está “podre” dentro de
nós mesmos?
A última vez que os vi, pareciam mais
interessados em “limpar” o mundo do que a si mesmos [risos]. Mas, como diria um
bom urubu, nunca é tarde para a grande faxina!
Os escritos de Wagner Uarpêik perpassam a filosofia, a literatura, e as ciências sociais. É tradutor, revisor, ghostwriter e instrutor de artes marciais. Libertália é o primeiro livro assinado pelo natalense. Site: copyrightzone.wixsite.com/wagneruarpeik
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